Já lá vão 3 anos desde o dia em que tudo deixou de ser como dantes, já lá vão 3 anos desde que o cabrão do cancro entrou nas nossas vidas...
Recordo como se fosse hoje, o dia em que recebi a chamada que mais me apertou o estômago; estava sol em Cascais apesar do frio e nada fazia adivinhar o que a visita da mãe ao médico iria trazer; a visita e tudo aquilo que se sucedeu desde então, um número infindável de outras visitas, de angústias e incertezas, de saber que se está doente, não fazendo ideia se alguém vez teremos cura.
Quando o telefone tocou a voz serena, como sempre, da minha irmã, não fazia prever tudo aquilo que a expressão "confirma-se, a mãe tem cancro", iria introduzir nas nossas vidas... De coração apertado e lágrimas nos olhos, voei para Lisboa, a voar para o abraço pesado a três, sabendo cada um de nós que aquilo ia dar trabalho, sabendo os 3 que íamos ter de lidar com um monstro que não conhecemos a cara, do género dos "bosses" de fim de nível, nos jogos que jogávamos quando éramos putos, um monstro que se ia apresentar a todos os "níveis", osso duro de roer.
Parece cliché mas é a mais pura das verdades, quem "deixa" entrar o cancro na sua vida, muda a sua forma de nela estar, a cabeça muda, as prioridades redefinem-se e tudo deixa de ser como até aí.
Podia enfatizar as centenas de idas ao médico, as mil perguntas ao Dr., "se está tudo bem", "quando vai tudo terminar", "qual o tamanho do bicho"; dúvidas, perguntas, incertezas, questões, horas sem sono a pensar em como manter o sorriso, quando o cérebro chora, em fazer das fraquezas-forças, em dizer que o coração está bom e que "está tudo bem", quando temos tantas dúvidas do que vai ser de nós, em que só nos apetece dizer todas as asneiras do mundo, bater em toda a gente e em que temos medo, muito medo...mas está tudo bem.
Podia falar dos milhares de horas a ouvir desabafos, a responder às perguntas da mãe que nada sabe, que tudo quer saber e nós sem saber o que saber ou o que pensar ou o que dizer.
Podia colocar o foco na força que é necessária - "tu tens de ser forte" -, mas nem sei o que isso significa, que tenho de ser forte eu sei, todos sabemos, é óbvio, mas se fossemos fortes não ficávamos doentes, a não ser que "temos de ser fortes", signifique que temos de criar força onde ela está precisamente a falhar, uma ordem impossível e utópica ou mais uma expressão feita que, no fundo, de nada serve.
Podia ainda enaltecer a capacidade de continuar a trabalhar, minha e da minha mãe, de continuarmos a passear, a rir, a colocar o Natal na mesa, a ir de férias, de continuar a treinar para lhe apontar os dedos quando ganhamos a tal medalha (é bonito e o pavilhão agradece), entre muitas outras coisas que sempre continuámos a fazer.
Podia recordar as horas de espera, quase sozinho, em pleno Hospital de São José, esperando apenas para ir, já de madrugada para casa, mas só depois de ver a cara dela após a cirurgia, só para a ver sorrir (drogada e serenamente) e garantir que a voltaram a trazer "inteira".
Podia também recordar as manhãs e tardes e noites passadas na quimioterapia, na radioterapia, nas consultas de toda a espécie, onde todos os muitos médicos que nos foram "passando pelas mãos" pareciam personagens de novela que iam sendo substituídos enquanto nós íamos ficando a ver o enredo.
Ou o abraço forte de cada vez que ia (e vou) para fora de Lisboa, para longe dela.
Ou a mão apertada enquanto ela rapava o cabelo pela primeira vez, com as lágrimas a caírem-lhe pelo rosto enquanto eu olhava para ela e para o espelho, de expressão imóvel, forte, mas com vontade de vomitar.
Ou os sorrisos forçados quando ela falava duas horas sobre a doença sem parar.
Ou as lágrimas que limpei quando saí sozinho do gabinete do médico, a custo de corridas no corredor do hospital para o vento secar a cara, depois de mais um revés, para voltar para junto dela de cara imperturbável e pronta a entregar o abraço certo.
Ou o sorriso dela quando lhe disseram que "estava boa de novo".
Ou o choro quando nos disseram que "estava doente outra vez".
Enfim, podia também partilhar as horas de espera, à porta dos tratamentos, da fisioterapia, das notícias boas, das notícias assim-assim, dos minutos para voltar a ver o sorriso dela, das horas para tudo isto e aquilo ter passado...
Mas não. Mas sim. O cancro é tudo isto, é contradição, mas é muito mais que apenas a soma deles todos. O cancro é inteiro, é uma entidade autónoma e superior à soma de todos estes sofrimentos. O cancro é fraqueza, enfraquece, desgasta, corrói, definha, provoca exaustão, saturação, raiva. Provoca tudo e não provoca nada. O cancro não se define por definição, é traiçoeiro, matreiro, silencioso. Não sei o que é o cancro, mas sei que ele dói como a merda. É isto.
Por tudo isto, mas não só, em mais de 3 anos de doença, que já foi e já voltou, que julgámos poder ser constipação mas que já aceitámos como gripe crónica, aprendemos que a vida é curta, que pode ser ainda mais curta e, por isso, mas também não só, que sejamos inteiros enquanto durarmos, pondo no mínimo que façamos o melhor que somos e podemos. Coadjuvado pela própria doente, que é ela sim a verdadeira heroína deste conto (sem fadas), aprendi a aceitar o cancro nas nossas vidas, a conseguir ser pleno no sorriso que antes rasgava de coração apertado. Tudo está bem enquanto estiver realmente bem e hoje podemos dizer que tudo caminha para mais uma vitória contra o monstro - 2-0 :)
E vamos dormir que amanhã é dia de almoçar com a mãe!
Até breve
Podia enfatizar as centenas de idas ao médico, as mil perguntas ao Dr., "se está tudo bem", "quando vai tudo terminar", "qual o tamanho do bicho"; dúvidas, perguntas, incertezas, questões, horas sem sono a pensar em como manter o sorriso, quando o cérebro chora, em fazer das fraquezas-forças, em dizer que o coração está bom e que "está tudo bem", quando temos tantas dúvidas do que vai ser de nós, em que só nos apetece dizer todas as asneiras do mundo, bater em toda a gente e em que temos medo, muito medo...mas está tudo bem.
Podia falar dos milhares de horas a ouvir desabafos, a responder às perguntas da mãe que nada sabe, que tudo quer saber e nós sem saber o que saber ou o que pensar ou o que dizer.
Podia colocar o foco na força que é necessária - "tu tens de ser forte" -, mas nem sei o que isso significa, que tenho de ser forte eu sei, todos sabemos, é óbvio, mas se fossemos fortes não ficávamos doentes, a não ser que "temos de ser fortes", signifique que temos de criar força onde ela está precisamente a falhar, uma ordem impossível e utópica ou mais uma expressão feita que, no fundo, de nada serve.
Podia ainda enaltecer a capacidade de continuar a trabalhar, minha e da minha mãe, de continuarmos a passear, a rir, a colocar o Natal na mesa, a ir de férias, de continuar a treinar para lhe apontar os dedos quando ganhamos a tal medalha (é bonito e o pavilhão agradece), entre muitas outras coisas que sempre continuámos a fazer.
Podia recordar as horas de espera, quase sozinho, em pleno Hospital de São José, esperando apenas para ir, já de madrugada para casa, mas só depois de ver a cara dela após a cirurgia, só para a ver sorrir (drogada e serenamente) e garantir que a voltaram a trazer "inteira".
Podia também recordar as manhãs e tardes e noites passadas na quimioterapia, na radioterapia, nas consultas de toda a espécie, onde todos os muitos médicos que nos foram "passando pelas mãos" pareciam personagens de novela que iam sendo substituídos enquanto nós íamos ficando a ver o enredo.
Ou o abraço forte de cada vez que ia (e vou) para fora de Lisboa, para longe dela.
Ou a mão apertada enquanto ela rapava o cabelo pela primeira vez, com as lágrimas a caírem-lhe pelo rosto enquanto eu olhava para ela e para o espelho, de expressão imóvel, forte, mas com vontade de vomitar.
Ou os sorrisos forçados quando ela falava duas horas sobre a doença sem parar.
Ou as lágrimas que limpei quando saí sozinho do gabinete do médico, a custo de corridas no corredor do hospital para o vento secar a cara, depois de mais um revés, para voltar para junto dela de cara imperturbável e pronta a entregar o abraço certo.
Ou o sorriso dela quando lhe disseram que "estava boa de novo".
Ou o choro quando nos disseram que "estava doente outra vez".
Enfim, podia também partilhar as horas de espera, à porta dos tratamentos, da fisioterapia, das notícias boas, das notícias assim-assim, dos minutos para voltar a ver o sorriso dela, das horas para tudo isto e aquilo ter passado...
Mas não. Mas sim. O cancro é tudo isto, é contradição, mas é muito mais que apenas a soma deles todos. O cancro é inteiro, é uma entidade autónoma e superior à soma de todos estes sofrimentos. O cancro é fraqueza, enfraquece, desgasta, corrói, definha, provoca exaustão, saturação, raiva. Provoca tudo e não provoca nada. O cancro não se define por definição, é traiçoeiro, matreiro, silencioso. Não sei o que é o cancro, mas sei que ele dói como a merda. É isto.
Por tudo isto, mas não só, em mais de 3 anos de doença, que já foi e já voltou, que julgámos poder ser constipação mas que já aceitámos como gripe crónica, aprendemos que a vida é curta, que pode ser ainda mais curta e, por isso, mas também não só, que sejamos inteiros enquanto durarmos, pondo no mínimo que façamos o melhor que somos e podemos. Coadjuvado pela própria doente, que é ela sim a verdadeira heroína deste conto (sem fadas), aprendi a aceitar o cancro nas nossas vidas, a conseguir ser pleno no sorriso que antes rasgava de coração apertado. Tudo está bem enquanto estiver realmente bem e hoje podemos dizer que tudo caminha para mais uma vitória contra o monstro - 2-0 :)
E vamos dormir que amanhã é dia de almoçar com a mãe!
Até breve
Força... <3
ResponderEliminar... e é com os olhos molhados, também com a lembrança de uma situação semelhante , que só te posso dizer: 'Força!' E que venham os 3,4,5,6,7,10,100 - 0 !
ResponderEliminarEstou aqui.
Um beijo grande *